A reconciliação

 

Eu conheci Karen numa das viagens que fiz a uma das cidades do Sul do Brasil.

 

Uma jovem que à época contava 16 para 17 anos. Loira, quase ruiva, olhos de um azul celestial. Magrinha, de pequena estatura, mas uma alma muito querida.

 

Procurou-me depois de uma palestra e perguntou-me se poderia falar duas coisas comigo. Acedi, dei-lhe o tempo e Karen começou a me falar que carregava um grave problema na alma. As lágrimas chegaram aos seus olhos sem cair. Perguntei-lhe qual era o problema tão grave e ela respondeu-me que era sua mãe.

 

Mas o que pode haver de tão grave com sua mãe? Retruquei.

 

E Karen me respondeu, deixando que as lágrimas agora rolassem.

 

É que minha mãe é meretriz e eu não quero saber dela, envergonho-me dela. Tenho um namoradinho, professor, e tenho muita vergonha que ele saiba que minha mãe é assim. Gostaria de nunca mais vê-la.

 

E vi o sofrimento daquela jovem, na forma como ela narrava os tormentos do seu coração em relação à situação de sua mãe.

 

Percebendo isso dirigi-me a Karen e lhe perguntei: Por acaso, minha amiga, você já conversou com sua mãe, para saber dela o que a levou a esse estilo de vida?

 

Possivelmente sua mãe o tenha feito para defendê-la. Na fragilidade do próprio coração, queria salvar a filha, de repente, de um padrasto, de alguém que ela temesse desrespeitar você. Converse com sua mãe, tenho certeza de que você ainda vai descobrir a mãe que tem.

 

Karen chorou, abraçou-me, perguntou se poderia me escrever. Eu assenti.

 

Duas semanas depois do nosso encontro em sua cidade, eu recebo uma pequena carta da jovenzinha e ela me dizia: Telefonei para minha mãe e pedi a ela um encontro para que conversássemos.

 

Ela ficou tão contente e marcamos de conversar no dia X.

 

Fiquei aguardando a chegada do dia X, para ver o que é que a menina iria me escrever depois.

 

Quase um mês se passou, quando recebi uma cartinha mais longa de Karen e dizia-me que conversaram, ela e sua mãe, durante uma noite inteira. E de fato, sua mãe confirmara que tivera medo de casar-se outra vez depois da viuvez e alguém, introduzido no seu lar, abusar de sua filha que ela amava tanto.

 

E pela fragilidade de sua alma ela, então, se envolveu com um homem, se envolveu com outro homem e quando se deu conta, estava viciada em se envolver com os homens.

 

A jovem me falava na carta que sentiu uma ternura tão grande por sua mãe, que ficaram amigas ao fim da conversa.

 

Já tinham combinado de irem morar no mesmo apartamento, as duas ficariam no mesmo quarto para que pudessem conversar durante muitas horas, retirando o atraso daquele tempo em que estiveram distanciadas, não pela mãe mas pela filha.

 

Tempos depois recebi outra mensagem da jovem do Sul, dizendo-me que sua mãe era a melhor pessoa do mundo, como a amava, como a ajudava e que estava vivendo ela, com sua mãe, um verdadeiro paraíso.

 


Já tinha apresentado seu namorado para a mãe e sua mãe o tratava muito bem, ele gostava da futura sogra.

 

Os dias foram se passando, os meses. Dois anos depois da primeira conversa, Karen me diz que tinha ficado noiva, depois me manda o convite do seu casamento para o qual sua mãe seria a madrinha. Seria uma festa de corações. Ela se reconciliara com sua genitora e, agora, Karen tem dois meninos.

 

Atualmente um tem seis anos, outro tem quatro anos, amam a avó, vivem no mesmo lar.

 

A antiga mãe atormentada pela prostituição se converteu no anjo tutelar da família. Cuida dos netos para que a filha e o genro possam trabalhar. Ama as crianças de paixão e a reconciliação abriu as portas da alma de Karen para descobrir um amor que a amava tanto, ainda que à distância.

 

*   *   *

 

Quando penso na história de Karen, história que eu conheci pessoalmente, fico imaginando quantos dramas familiares existem nessa mesma direção.

 

Filhos, filhas que se antagonizam com pais, com mães, cheios de razões e muitas vezes com razões de fato, mas que nunca se predispuseram a ouvir as razões do outro.

 

Conversar com o pai, conversar com a mãe, saber o que de fato aconteceu e abrir a alma para saber perdoar. Nenhum filho tem esse direito de ficar de mal com sua mãe, de ficar de mal com seu pai, por mais complicados que eles sejam,  porque foram eles que nos permitiram chegar.

 

Há muitas mães certinhas, cheias de virtudes, mas que não deixam os filhos nascer. Há muitos pais certinhos socialmente, cultos, mas que não querem filhos.

 

Então os nossos pais, as nossas mães ainda que pobres, analfabetos, portando certos vícios, até o hábito da prostituição sexual, mas que abriram as portas da reencarnação para que nós chegássemos.

 

Não é sem sentido que o Decálogo de Moisés estabelece num dos seus mandamentos: Honra a teu pai e a tua mãe, a fim de viveres longo tempo na terra que o Senhor te dará.

 

 Honrar é respeitar. Ninguém poderá impor a um filho amar o seu pai, amar a sua mãe, principalmente quando consideramos as nuanças da reencarnação.

 

Muitas vezes renascemos como filhos, como filhas de antigos inimigos nossos. Muitas vezes recebemos no lar como filhos, como filhas, antigos adversários nossos e é natural que, pelas Leis da afinidade, nós não tenhamos tantas aberturas para amar, tanto incentivo para amar. Toleramos, suportamos, no entanto, respeitando sempre.

 

Não precisamos concordar com tudo que eles fazem. Mas odiar o pai, odiar a mãe, ter raiva do pai, ter raiva da mãe certamente nos complicará porque isso caracterizará um crime de lesa-coração, um crime de desrespeito aos pais, de ingratidão, que o Evangelho aponta como sendo uma das coisas mais sérias que a alma pode contrair, para sua vivência atual e futura.

 

Do mesmo modo, como precisamos nos reconciliar com nossos amores, pai, mãe, irmãos enquanto é tempo, enquanto estamos juntos deles. Não nos esqueçamos de que foi Jesus Cristo que nos propôs: Reconcilia-te com teu adversário, enquanto estás a caminho com ele. Enquanto estamos aqui na Terra.

 

Se o nosso adversário falecer antes de nós ou nós antes dele,  teremos aí um grave imbróglio, porque pode ser que ele, no Além, não nos perdoe as ingratidões, a malquerença, os distúrbios provocados em sua vida.

 

Pode ser que daqui não tenhamos mais chance de pedir-lhes desculpas, de pedir-lhes perdão e carregaremos o complexo de culpa, o tormento íntimo durante uma existência inteira, sentindo sempre que somos culpados ou responsáveis pelas desditas que eles passaram ou mesmo por sua morte.

 

Quantas vezes encontramos filhos, esposos, amigos que se agarram à alça do ataúde onde estão os corpos das pessoas por eles desamadas e gritam e se desesperam. Para quem esteja vendo parecerá bem querer, mas no fundo da alma de cada uma pode ser complexo de culpa.

 

Eu podia ter vivido melhor com ele.

 

Eu podia ter sido melhor para ela.

 

Eu podia ter feito um pouco mais para nos reconciliarmos.

 

Eu poderia ter investido um pouco mais, para não deixar murchar o amor, que nunca morre.

 

A indiferença, a malquerença nos complica. Antes de irmos ao templo entregar nossa oferenda, diz o Evangelho, antes de irmos para as nossas práticas religiosas, sejam elas quais forem, reconciliemos o coração com aquelas pessoas que nos atendem, que nos servem ou mesmo com aqueles que nos antagonizam, que são nossos adversários ou mesmo que sejam nossos inimigos.

 

É por isto que, baseando-nos nos ensinos de Jesus Cristo, entendo Karen, entendi Karen. E há tantas outras Karens vivendo no mundo, precisando de amar.


Transcrição do Programa Vida e Valores, de número 209,
apresentado por Raul Teixeira, sob coordenação da
Federação Espírita do Paraná.
Programa gravado em agosto de 2009.
Exibido pela NET, Canal 20, Curitiba, no dia 13 de junho de 2010.
Em 5.1.2021

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