Uma mulher revolucionária na França do século XIX
O que temos, em termos de registros brasileiros, a respeito de Amélie Gabrielle Boudet é muito pouco.  Pouco sabemos, inclusive, de sua aparência, porque não temos senão retratos que a mostram idosa, após a morte do esposo amado.

Ao nos darmos conta da vida do ilustre Codificador, de sua extraordinária ação como educador, homem de letras, escritor, é de nos perguntarmos como era aquela mulher, nove anos mais velha do que ele, por quem ele se apaixonou, à primeira vista. (Jornal Mundo Espírita, janeiro 2017, p. 10 e 11)

O pesquisador Adriano Calsone que, em 2015, nos brindou com o livro Em nome de Kardec, publicado pela Editora Vivaluz, ampliou pesquisas, servindo-se de obras espíritas e não espíritas, e na Biblioteca Nacional da França, resgatando a grande personalidade que foi Amélie Gabrielle Boudet.

Ela nasceu em 22 de novembro de 1795, mês de geadas, em Thiais, distante dezenove quilômetros da capital francesa e que, à época, tinha pouco mais de mil habitantes.

Julien Louis Boudet era escrivão público e proprietário de terras, que herdara de seu pai. Sua esposa, Julie Louise Saignes de Lacombe, cresceu órfã de pai, que desencarnou quando ela tinha apenas quinze anos de idade.

Tinha vinte e sete  anos o Sr. Boudet, quando nasceu sua filha. Era uma época difícil, em que os heróis revolucionários se haviam transformado em vilões. Somente em Paris, oitocentas pessoas por mês eram executadas. Os tempos eram de muita cautela e quase susto, constante.

A avó materna de Amélie vinha de uma família de artistas e, por sua influência direta e de sua mãe, a menina conheceu a música, a pintura, o artesanato, a escultura, o teatro, a dança, a literatura francesa e de outros países, a poesia, a prosa, o conto, a crônica, o romance.

A família, talvez por exigência do trabalho de tabelião, se mudou para a pequena comunidade, de quase três mil habitantes, cidade natal de Julien Louis, Château du Loir, província de Sarthe.

Desejando dar à filha uma instrução aprimorada, transladou-se, posteriormente, para Paris e, em 1810, Gabrielle foi matriculada num colégio interno da elite parisiense.

Ela amava os idiomas e a gramática. Aprendeu o latim, por ser idioma obrigatório e é possível que conhecesse o grego, além de sua língua pátria. Nas artes, dispunha de ideias e conceitos avançados, muito diversos dos que eram prescritos nas escolas.

Apreciava o teatro francês, gostava da literatura realista de Honoré de Balzac, mais tarde se apaixonando pela estética literária do premiado Victor Hugo.

Optou por estudar na Escola Normal Leiga de Paris, porque essa instituição mantinha a orientação pedagógica de Pestalozzi, aquele mesmo mestre de Rivail.

Interessantes caminhos que um e outro trilharam, os que viriam a se tornarem esposos.

Ela se graduou, aos dezenove anos, com diploma de primeira classe e passou a ser conhecida como Institutora Boudet,  no meio acadêmico. A fim de ficarem mais próximos ao local do primeiro emprego da filha, os pais se estabeleceram num apartamento não muito distante do Boulevard Saint-Germain.

Foi um belo presente para a jovem, pois ficava a uns vinte minutos a pé do Museu do Louvre, bastando cruzar uma das pontes do rio Sena. Quantas vezes ela terá visitado o museu, quantas horas terá se detido frente às obras de arte, extasiando-se com as técnicas, as cores, as linhas, a composição de cada quadro, de cada escultura?

A Institutora Boudet teve contato direto com o educador David Lévi Alvarès, que se tornaria parceiro pedagógico de Rivail. Numa época de muito preconceito para com a mulher, em que na maioria das escolas públicas francesas não havia cursos de educação básica para as jovens, Alvarès fundou, por sua própria conta, um curso de educação feminina que contemplava as idades dos seis aos vinte anos.

Seus esforços foram reconhecidos pelas autoridades francesas, que estudavam uma maneira de adotar o método pedagógico de Pestalozzi, chegando a receber condecorações como a de Cavaleiro da Legião de Honra, que lhe foi conferida pelo Ministro da Instrução Pública de Gramáticas, Monsieur Guizot.

Enquanto as moças de sua época costumavam se casar na adolescência, Amélie continuava solteira aos trinta, quando publicou seu primeiro livro: Contos primaveris, no qual ressaltava os ensinamentos do mestre Pestalozzi.

E, sua segunda obra, publicada no ano seguinte, 1826, Noções de desenho, foi sua singela contribuição à educação artística vigente. Para ela, o desenho além de ser a alma da pintura, tinha também uma espécie de linguagem universal.

Finalmente, com apoio das autoridades educacionais, ela lançou O essencial em Belas-Artes.

Suas três obras, publicadas num período de quatro anos, tiveram uma repercussão muito positiva em toda a França, especialmente entre os professores de Arte e Literatura. O próprio Guizot, ainda Ministro, recomendava seus trabalhos.

Natural que as notícias do seu sucesso corressem rápidas, o que chamou a atenção de um outro Institutor, de nome Hippolyte Léon Denizard Rivail, que desejou conhecer a mestre da arte de ensinar arte.1

Como foi, realmente, que ambos se conheceram? Onde? De que forma? Terá sido durante algum sarau artístico ou literário? Terão sido apresentados por algum institutor em comum? Terá ido ao encontro de Amélie o professor Rivail, admirado por seu trabalho como pedagoga e linguista? Terão se descoberto ambos discípulos do mestre Pestalozzi?

Pode ter sido cada uma dessas possibilidades. Contudo, para os que estudamos a Doutrina Espírita, que conhecemos a respeito da planificação reencarnatória para os que vêm em missão específica, podemos concluir que foram os Espíritos que, de alguma forma, promoveram a aproximação de ambos.

Que sentimentos os terão envolvido, na primeira vez que se viram, no Théâtre Français, na estreia da peça teatral A Batalha de Hernani, de Victor Hugo, em fevereiro de 1830?

Terão se cruzado seus olhares? Terá se ruborizado Amélie? Terá ousado acenar-lhe o eminente pedagogo? Ele estava lá, próximo a Hugo e à querida professora.

Para os conceitos da época, ela era uma balzaquiana, com seus trinta e cinco anos de idade.
Mais baixa do que o 1,65m de Rivail, tinha olhos pardos e serenos, e aparência jovial.

O pedagogo francês era de compleição forte, cabeça grande, redonda e maciça, feições bem delineadas e olhos cinza claros, parecia mais alemão que francês; enérgico, determinado, de temperamento calmo, cauteloso, não imaginativo quase até a frieza, era incrédulo, por natureza e educação; grave, vagaroso no falar, simples de maneiras, deixava transparecer a dignidade serena, resultante da determinação e da franqueza – traços distintivos de seu caráter.2

O casamento se deu em 9 de fevereiro de 1832. Na época, Rivail era soldado, e embora estive gozando licença por um ano, precisou de uma permissão especial do 61º Regimento de Infantaria, lotado em Rouen, departamento do Sena inferior.

O pai do noivo não compareceu à cerimônia que, segundo alguns documentos, o davam como presumidamente morto, na Espanha, em meados de 1807. Por sua vez, da parte da noiva, somente o pai estava presente, considerando que a mãe já havia desencarnado.

O ex-tabelião, de sessenta e quatro anos, deixou um dote de oitenta mil francos à filha. Quanto ao tio de Rivail, François Duhamel, na mesma oportunidade, instituiu o sobrinho como único herdeiro de todos os bens que ele deixaria por ocasião de sua morte, herança que, em desencarnando Rivail, à sua esposa passariam.

Verdade é que, já em 1834, esse mesmo tio, graças à sua paixão pelo jogo, obrigaria a Institution Rivail fechar suas portas, dado que ele perdia o ralo dinheiro que ela lucrava, por meio das contribuições escolares ou dos repasses públicos municipais.

Mas, aquele dia de fevereiro foi de muita felicidade. Rivail se unia à doce Amélie. Ela se despedia do estigma de solteirona, com o qual o preconceito a marcava. Tornava-se a senhora Rivail, companheira desse homem que se comprometia a honrá-la, pela divina oportunidade de estar ao lado de uma mulher de extraordinário valor: uma pedagoga linguista, poetisa, escritora, autora, artista plástica-desenhista, aquarelista, gravurista, miniaturista e pintora autodidata, Institutora de Letras e Belas-Artes.

O casal foi morar na rue de Sèvres, 35, em Paris, dividindo o lar com a mãe e o tio de Rivail, e a Institution Rivail, localidade que ficava a apenas quatrocentos e cinquenta metros de distância do apartamento da família Boudet.

Nas paredes da casa foram distribuídas as gravuras, desenhos e pinturas de Amélie, ao lado de títulos e diplomas de ambos.

Juntos passariam por dificuldades como quando, ao encerrar a Institution Rivail, investiram sua parte, cerca de quarenta e cinco mil francos, com um negociante, amigo íntimo que, realizando maus negócios, veio a falir, nada deixando aos credores.

Ressalte-se que Amélie teve larga experiência em administração, considerando que administrou os mais de trinta imóveis que lhe foram legados por ocasião da morte de seu pai, em 7 de julho de 1847, aos setenta e nove anos de idade. O espólio indicava terras e imóveis em Thiais, Château-du-Loir e Paris, sendo legatários Amélie e seu irmão mais jovem, Julien François.

Para esse cunhado, em certa oportunidade, Rivail chegará a emprestar seis mil francos, a fim de socorrê-lo na quitação de certas dívidas.

Foi Amélie quem financiou, com sua renda, a primeira edição de O livro dos Espíritos, em 1857 e o primeiro fascículo da Revista Espírita, em 1858.

Que casal! Saberiam eles o que os aguardava, de futuro? Que legariam, além de todo seu empenho pela instrução e pela educação, o precioso tesouro da Doutrina Espírita ao mundo?

Maria Helena Marcon
1.CALSONE, Adriano. Madame Kardec – A história que o tempo quase apagou. Atibaia: VIVALUZ, 2016.
2.DOYLE, Arthur Conan. A história do Espiritualismo – De Swedenborg ao início do século XX. Brasília: FEB, 2012. cap. 21.

© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014