Carta de Allan Kardec - 15.9.1863
Carta de Allan Kardec, enviada de Sainte-Adresse, para onde se retirara a fim de trabalhar na obra O Evangelho segundo o Espiritismo, à sua esposa Amélie Boudet, que ficara em Paris.

Sainte-Adresse, terça-feira, 15 de setembro de 1863.

Minha boa Amélie,


Recebi tua carta esta manhã e, embora nada tenha de particular a te dizer, apresso-me em agradecer aos Srs. D´Ambel e Canu pelo que eles fizeram ao Sr. Costeau, pois atuaram como verdadeiros espíritas. Sua alocução é admirável; eles mostraram agir com coração, o que não me surpreende, visto que sua fé é sincera. O Sr. Vezy também deve receber sua quota de felicitações.

Quanto à viúva, tu sabes que o Sr. Prévert me entregou 200 francos para as boas ações; podes, pois, lançar mão de uma parte deles para ajudá-la. Esse dinheiro não pode ter melhor emprego.

Estou maravilhado com as alvíssaras que me dás; razão tinham os Espíritos quando me disseram que, ao retornar, eu encontraria um progresso satisfatório. A comunicação que Erasto me deu, através do Sr. D´Ambel, é muito animadora para mim e eu lhe agradeço; concorda com a mensagem da Verdade, a mim transmitida por intermédio da Sra. Judith.

Tu não me falas da tua saúde, o que me faz presumir que é boa; entretanto, eu ficaria mais contente se dela tivesse uma certeza mais positiva. Quanto a mim, estou muito bem; os últimos banhos que tomei fortificaram-me de maneira notável. Já não tenho aquela fraqueza nas pernas que sentia há muito tempo e pude comprová-lo domingo. O tempo estava magnífico e fui tomado pela preguiça, ou seja, trabalhei muito pouco. Após o banho fiz um longo passeio marítimo num pequeno barco à vela; embora o mar estivesse calmo, penso que não me terias acompanhado naquela casquinha de noz a balouçar-se nas ondas.

À tarde fiz uma excursão à beira do mar, sobre os rochedos desmoronados que formam um promontório situado abaixo dos sinais e dos faróis; depois subi desde o nível do mar até o pequeno vale que precede os sinais, escalando os rochedos e as falésias. E, coisa extraordinária! De modo algum me senti ofegante nem sufocado, como em geral acontece quando subo uma simples escada. Voltei pela capela de Nossa Senhora das Ondas e desci novamente à beira-mar para jantar no parque das ostras. Cheguei em casa às 19h30, estava um pouco fatigado e me deitei; dormi até às 8 horas da manhã.

Faz alguns dias que o tempo está admirável, sem nuvens no céu, um Sol resplandecente, um mar tranquilo como um lago, salpicado de navios e de embarcações de todos os tamanhos; é um espetáculo encantador. O mar sem fim é para mim uma grande distração; todo dia constato sua beleza. Não há um único ponto no horizonte que eu não o explore, daí saindo observações interessantes e instrutivas que me levam a meditar, pois tudo é instrução para quem quer refletir.

Domingo próximo será meu último domingo aqui. Terei uma pequena reunião espírita na casa do Sr. Bodier, que está muito contente por me receber; em seguida, farei meus preparativos para a partida. O dia ainda não está certo, mas penso que será terça-feira ou, no máximo, quarta-feira; eu to avisarei.

Partirei pelo trem das 10h30 da manhã, o que significa que chegarei às 6h30 da noite, hora conveniente para todos.

Adeus, cara Amélie, teu muito dedicado.

[assinado] A.K.

PS – Quando me escreveres, cuida que tua carta me chegue às mãos domingo pela manhã, juntando-lhe, se possível, a comunicação de Costeau.

Esta carta, mais completa e extremamente tocante, permite mergulhemos fluidicamente no contexto da época em que foi redigida a Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, nas belas paisagens à beira-mar da Normandia. Aí encontramos também uma menção à desencarnação do Sr. Costeau1, que era muito pobre, bem como o auxílio prestado à sua viúva, além de referência à mensagem de Erasto, já citada, assim como numerosos detalhes sobre o segundo motivo desse retiro, que se prendia também a razões de saúde, muito melhorada ao que tudo indica, graças, por certo, à ação combinada dos Espíritos que o assistiam na redação da obra. Finalmente, Kardec menciona seu retorno a Paris.

Carta extraída do artigo Como Allan Kardec preparou O Evangelho segundo o Espiritismo, de Charles Kempf, traduzido por Evandro Noleto Bezerra, Revista Reformador, julho.2014.
Em 22.2.2019.

1. Ver O céu o inferno, FEB Editora, segunda parte, Espíritos felizes.

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