Kardec e os objetivos da sociedade espírita

Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita :: novembro/2005

 

Algumas pessoas parecem enganadas quanto ao verdadeiro objetivo e o caráter da Sociedade. Permiti-me recordá-los em poucas palavras.

 

(...) Esse objetivo é, essencialmente e, pode dizer-se, com exclusividade, o estudo da ciência espírita. O que queremos, antes de tudo, não é nos convencer, pois já o estamos, mas instruir-nos e aprender o que não sabemos.

 

Para tanto, queremos colocar-nos nas mais favoráveis condições. Como esses estudos exigem calma e recolhimento, queremos evitar tudo quanto seja causa de perturbação. Tal é a consideração que deve prevalecer na apreciação das medidas que vamos adotar.(...)

 

Não impomos nossas idéias a ninguém. Os que as adotam é porque as consideram justas. Os que vêm a nós é porque pensam aqui encontrar oportunidade de aprender (...).

 

Reunimo-nos para estudar o Espiritismo, como outros se reúnem para estudar a frenologia, a história ou outras ciências. E como nossas reuniões não se baseiam em nenhum interesse material, pouco nos importa se outras se formam ao nosso lado. Na verdade, seria atribuir-nos idéias bem mesquinhas, bem estreitas e bem pueris crer que as veríamos com olhos ciumentos; os que pensassem em nos criar rivalidades mostrariam, por isso mesmo, quão pouco compreendem o verdadeiro espírito da doutrina. Só lamentamos uma coisa: que nos conheçam tão mal, a ponto de nos suporem acessível ao ignóbil sentimento do ciúme.

 

Compreende-se que empresas mercenárias rivais, que podem prejudicar-se pela concorrência, se vejam com maus olhos. Mas se essas reuniões não tiverem em vista, como deveriam ter, senão um interesse puramente moral, e a elas não se misturarem nenhuma consideração mercantil, pergunto: Em que poderiam ser prejudicadas pela multiplicidade? Dirão, sem dúvida, que se não existe interesse material, há o do amor-próprio, o desejo de destruir o crédito moral de seu vizinho. Mas talvez esse móvel fosse ignóbil ainda. Se é assim - que Deus não permita - apenas lamentaremos os que forem movidos por semelhantes pensamentos. Queremos sobrepujar os vizinhos? Tratemos de fazer melhor que eles: eis aí uma luta nobre e digna, desde que não seja ofuscada pela inveja e pelo ciúme.

 

Eis, pois, senhores, um ponto essencial, que não deve ser perdido de vista: não formamos uma seita, nem uma sociedade de propaganda, nem uma corporação com interesse comum; se deixássemos de existir, o Espiritismo não sofreria nenhum prejuízo, formando-se, de nossas ruínas, vinte outras sociedades.(...)(...) As raízes do Espiritismo não estão em nossa Sociedade, mas no mundo inteiro. Existe algo mais poderoso que eles, que todas as sociedades: é a doutrina, que vai ao coração e à razão dos que a compreendem, e, sobretudo, dos que a praticam.

 

Esses princípios, senhores, indicam-nos o verdadeiro caráter do nosso regimento, que nada tem em comum com os estatutos de uma corporação. Nenhum contrato nos liga uns aos outros; fora de nossas sessões não temos outras obrigações recíprocas que não sejam as de nos comportarmos como gente bem-educada. Os que nessas reuniões não encontrarem aquilo que nelas esperam achar, têm toda liberdade de retirar-se; eu mesmo não compreenderia que permanecessem, desde que não lhes convenha o que aqui se faz. Não seria racional que viessem perder tempo.

 

Em toda reunião é preciso uma regra para a manutenção da boa ordem. Falando claramente, nosso regulamento nada mais é que uma instrução destinada a estabelecer ordem em nossas sessões, a manter, entre os assistentes, as relações de urbanidade e de conveniência que devem presidir a todas as assembléias de pessoas educadas, abstração feita das condições inerentes à especialidade de nossos trabalhos. Porque não tratamos apenas com homens, mas com Espíritos que, como sabeis, não são igualmente bons, e contra a velhacaria dos quais é preciso que nos resguardemos. Nesse número, alguns são muito astuciosos e podem mesmo, poródio ao bem, impelir-nos a uma via perigosa. Cabe a nós ter bastante prudência e perspicácia para frustrá-los, o que nos obriga a tomar precauções particulares.

 

Lembrai-vos, Senhores, da maneira pela qual se formou a Sociedade. Eu recebia em minha casa algumas pessoas em pequeno comitê. Com o crescimento do grupo, acharam que era preciso um local maior. Para consegui-lo, teríamos de pagar; tivemos, portanto, que nos cotizar. Disseram mais: é preciso ordem nas sessões; não se pode admitir o primeiro que chegar; é necessário, portanto, um regulamento.

 

Eis toda a história da Sociedade. Como vedes, é bem simples. Não entrou na cabeça de ninguém fundar uma instituição, nem se ocupar do que quer que seja fora dos estudos; eu próprio declaro, de maneira muito formal, que se um dia a Sociedade quiser ir além, não a acompanharei.

 

O que fiz, outros são mestres em fazê-lo(...). E esses diferentes grupos podem entender-se perfeitamente e viver como bons vizinhos. (...) Devem ser fração de um grande todo, mas não seitas rivais. E o mesmo grupo, tornado muito numeroso, pode subdividir-se como os enxames de abelhas.(...)

 

Entretanto, é preciso convir que entre certos grupos há uma espécie de rivalidade ou, antes, de antagonismo. Qual a causa? Meu Deus! esta causa está na fraqueza humana, no espírito de orgulho que quer impor-se; está, sobretudo, no conhecimento ainda incompleto dos verdadeiros princípios do Espiritismo. Cada um defende os seus Espíritos, como outrora as cidades da Grécia defendiam seus deuses que, seja dito de passagem, não passavam de Espíritos mais ou menos bons. Essas dissidências só existem porque há pessoas que querem julgar, antes de terem tudo visto, ou que julgam do ponto de vista de sua personalidade. Elas se apagarão, como muitas outras já se apagaram, à medida que a ciência se reformular (...).

 

Em resumo, o que devemos buscar é remover todas as causas de perturbação e de interrupção; manter entre nós as boas relações, de que os espíritas sinceros, mais que outros, devem dar exemplo; opor-nos, por todos os meios possíveis, ao afastamento da Sociedade de seus objetivos, à abordagem de questões que não são de sua alçada, e que degenere em arena de controvérsias e de personalismo. (...)


Texto extraído das Considerações de Allan Kardec, sobre o objetivo e o caráter da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, da Revista Espírita de abril de 1860, ed. FEB.

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