Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita :: agosto/2005
(...) O homem chegou a uma fase em que as ciências, as artes e as indústrias atingiram um alcance até hoje desconhecido. Se a satisfação que delas tira satisfaz a vida material, deixa um vazio na alma: ele aspira qualquer coisa de superior, sonha com melhores instituições, deseja a vida, a felicidade, a igualdade, a justiça para todos.
Mas, como atingir tudo isso com os vícios da sociedade e, sobretudo, com o egoísmo imperando? O homem sente, pois, a necessidade do bem para ser feliz; compreende que só o reino do bem pode lhe dar a felicidade pela qual aspira. Esse reinado ele o pressente pois, instintivamente, crê na justiça de Deus e uma voz secreta lhe diz que uma nova era vai se iniciar.
Como ocorrerá isso?
Ora, se o reino do bem é incompatível com o egoísmo, é preciso que o egoísmo seja destruído. Mas, o que pode destruí-lo? A predominância do sentimento do amor, que leva os homens a se tratarem como irmãos e não como inimigos. A caridade é a base, a pedra angular de todo edifício social. Sem ela o homem construirá sobre a areia. Assim sendo, urge que os esforços e, sobretudo os exemplos de todos os homens de bem, a difundam; e que eles não se desencorajem ao defrontarem as recrudescências das más paixões. Elas são os inimigos do bem. Ganhando terreno, lançam-se contra ele; mas está nos desígnios de Deus que, por seus próprios excessos, elas se destruam. O paroxismo de um mal é sempre o sinal de que chega ao seu fim.
Acabo de afirmar que, sem a caridade, o homem constrói sobre a areia. Um exemplo torna isso compreensível.
Alguns homens bem intencionados, tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes, supuseram encontrar o remédio para o mal em certas doutrinas de reforma social. Com pequenas diferenças, os princípios são pouco mais ou menos os mesmos em todas essas concepções, qualquer seja o nome que se lhes dê. Vida comunitária, por ser a menos onerosa; comunidade de bens para que todos tenham a sua parte; nada de riquezas, mas, também, nada de miséria. Tudo isso é muito sedutor para aquele que, não tendo nada, vê, antecipadamente, a bolsa do rico passar ao fundo comunal, sem cogitar que a totalidade das riquezas, postas em comum, criaria uma miséria geral ao invés de uma miséria parcial; que a igualdade, estabelecida hoje, seria rompida amanhã pela mobilidade da população e a diferença entre aptidões; que a igualdade permanente de bens supõe a igualdade de capacidades e de trabalho. Mas, esta não é a questão. Não está em minhas intenções examinar o lado positivo e o negativo desses sistemas. Faço abstração das impossibilidades que acabo de citar e proponho olhá-los de um outro ponto de vista que, parece-me, ainda não preocupou a ninguém e que se relaciona à nossa área de cogitações.
Os autores, fundadores ou promotores de todos esses sistemas, sem exceção, não visaram senão a organização da vida material de uma maneira proveitosa a todos. A finalidade é louvável, indiscutivelmente. Resta saber se, nesse edifício, não falta a base que, só ela, poderia consolidá-lo, admitindo-se que fosse praticável.
A comunidade é a abnegação mais completa da personalidade. Ela requer o devotamento mais absoluto, pois cada pessoa deve abnegar de sua pessoa. Ora, o móvel da abnegação e do devotamento é a Caridade, isto é, o amor ao próximo. Entretanto, é preciso reconhecer que a base da caridade é a fé; que a falta de fé conduz ao materialismo, e o materialismo ao egoísmo. Um sistema que, por sua natureza, requer para sua estabilidade virtudes morais no mais supremo grau, haveria que ter seu ponto de partida no elemento espiritual. Pois muito bem, ele não o leva absolutamente em conta, já que o lado material é a sua finalidade exclusiva. Muitas dessas concepções são fundamentadas em uma doutrina materialista confessada alta e bom som, ou sobre um panteísmo que não passa de uma espécie de materialismo disfarçado. Isso quer dizer que são enfeitadas com o nome da fraternidade, mas a fraternidade, assim como a caridade, não se impõe nem se decreta, é algo que existe no coração e não será um sistema que a fará nascer, se ela aí já não se encontra alojada. Ao mesmo tempo em isto ocorre, o defeito antagônico à fraternidade arruinará o sistema e o fará cair na anarquia, já que cada pessoa quererá tirar para si a melhor parte. A experiência aí está, diante de nossos olhos, para provar que eles não extinguem nem as ambições nem a cupidez.
Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa, como se formam obreiros, antes de lhes confiar um trabalho. Antes de construir, é preciso que nos certifiquemos da solidez dos materiais. Aqui os materiais sólidos são os homens de coração, de devotamento e abnegação. Sob o egoísmo, o amor e a fraternidade são, como já dissemos, palavras vazias. Assim sendo, de que maneira, sob o império do egoísmo, fundar um sistema que requeira a abnegação em um sentido tão amplo que tenha por princípio essencial a solidariedade de todos para cada um e de cada um para com todos?
Alguns homens abandonaram o solo natal para ir fundar, à distância, colônias sob o regime da fraternidade. Quiseram fugir ao egoísmo que os esmagava, mas o egoísmo seguiu com eles e lá, onde se acham, encontram-se exploradores e explorados, pois que a caridade lhes falta. Acreditaram que bastasse conduzir o maior número de braços possível, sem imaginar que, ao mesmo tempo, levavam os vermes roedores da nova instituição, arruinada tão mais rapidamente porque não tinha em si nem força moral, nem força material suficientes.
© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014