Charles Kempf
Este artigo resume as informações – obtidas em arquivos públicos da França – sobre as origens dos pais daquele que se tornaria Allan Kardec, assim como o panorama histórico no qual eles viveram até seu nascimento, em 1804.
Casamento dos pais
Jean-Baptiste Antoine Rivail e Jeanne-Louise Duhamel se casaram em Bourg-en-Bresse, em 5 de fevereiro de 1793. Transcrevemos, a seguir, parcialmente, a certidão de nascimento:
[...] De uma parte, Jean-Baptiste Antoine Rivail, de 34 anos de idade, cidadão, homem de lei, domiciliado na municipalidade de Belley, Departamento do Ain, filho do falecido Antoine Rivail, negociante e da falecida Reine Richard, casados, domiciliados na municipalidade de Lyon, departamento do Rhône e Loire. Da outra parte Jeanne-Louise Duhamel, de dezenove anos de idade, filha de Benoît Marie Duhamel, cidadão, homem de lei, procurador geral, síndico do Departamento do Ain, domiciliado no dito Bourg, e de Charlotte Marie Bochard, casados.
Os futuros cônjuges estavam acompanhados de Claude Joseph Duhamel, procurador judicial, tio paterno da futura noiva, de Jean-Antoine Rostaing, comissário das guerras, de Henry Fulque D’Oraison, marechal de campo, de François Duparc, engenheiro, de Thomas Sandos, tenente-coronel comandante da Legião dos Alpes, de François Brunel, capitão da Gendarmeria, do primogênito Claude Marie Favier, juiz do Tribunal do Distrito, de Joseph François Enjorrant pai, homen de lei, de Claude François Enjorrant filho, comissário nacional, de Claude Arletine Besson, administrador do Departamento, e de Jean Louis Ballaidier, também administrador no Departamento, todos testemunhas maiores de idade, residentes na dita cidade de Bourg.
[...] 1º Da certidão de nascimento do dito Jean-Baptiste Antoine Rivail, datada de 6 de fevereiro de mil setecentos e cinquenta e nove, que constata que ele nasceu a 5 do dito mês de fevereiro em Lyon, Departamento de Rhône e Loire, do casamento legítimo entre Antoine Rivail e Reine Richard, acima citados; 2º da certidão de nascimento da dita Jeanne-Louise Duhamel, datada de 15 de abril de mil setecentos e setenta e três, que constata que ela nasceu no dito dia na municipalidade de Marboz, Departamento do Ain, do casamento legítimo do dito Benoît Marie Duhamel e de Charlotte Marie Bochard, acima citados [...].
Os futuros pais de Kardec, recém casados, moravam, pois, em Belley, em 1793. Os falecidos pais de seu pai eram originários de Lyon, os de sua mãe de Marboz, e moravam então em Bourg. A lista das testemunhas do casamento dá uma ideia sobre suas relações da época, entre as quais vários notáveis da profissão jurídica e militar. Thomas Santos e Henry Fulque d’ Oraison eram generais de Brigada, não só sob a Revolução, mas também sob o Primeiro Império. Fulque d’Oraison foi nomeado comandante de Ain, em junho de 1792, e depois em Lyon, em março de 1793 (um mês após o casamento). Thomas Chegaray de Sandos (1756 – 1797) morreu em consequência dos ferimentos recebidos em Rivoli: por conseguinte, ele tinha participado da campanha da Itália, em 1796/1797, conduzida por Napoleão Bonaparte, nomeado general em chefe do exército da Itália.
Em 1791, Jean-Antoine Rostaing, estava em Bourg, onde ocupava o cargo de visitador principal dos Arquivos. Era redator em chefe do jornal do Departamento do Ain, que foi publicado de abril a setembro de 1792. Ocupou vários cargos durante o período da Revolução e teve que fugir para o estrangeiro a fim de evitar ser feito prisioneiro pelos revolucionários. Retornou a França em 1795, com o título de oficial.
Ascendentes de Rivail
Anotamos acima que os futuros pais de Kardec, recém casados, moravam provavelmente em Belley, em 1793, no período extremamente agitado da Revolução no Departamento do Ain. Jean-Baptiste Antoine Rivail, futuro pai de Allan Kardec, exercia funções militares e por isso, devia ser muito solicitado. Foi preso em 21 de fevereiro de 1794 e libertado em 29 de abril, após mais de dois meses de prisão. Benoît Marie Duhamel, avô materno de Allan Kardec, residia em Saint-Denis-lès-Bourg. Ele foi feito prisioneiro em 27 de outubro de 1793, transferido para Lyon, em 13 de fevereiro de 1794, depois condenado à morte como contrarrevolucionário e guilhotinado pela comissão revolucionária de Lyon, em 16 de março de 1794. Jeanne-Louise Duhamel, futura mãe de Hippolyte Léon Denizard Rivail, que tinha apenas vinte anos, sofreu, por conseguinte, dura prova em 1793 e em 1794, o ano de seu casamento: seu pai, preso e guilhotinado pelos revolucionários, enquanto que seu marido estava preso por esses mesmos revolucionários.
Novas provas
As rivalidades após a Revolução se apaziguaram no meio do ano 1794. Prosseguindo as nossas pesquisas nos arquivos on-line do Departamento do Ain, encontramos a certidão de nascimento seguinte, datada de 27 de outubro de 1796:
Este dia de hoje seis Brumário do ano Cinco da República francesa una e indivisível e Democrática, o cidadão Jean-Baptiste Antoine Rivail residente do município de Belley assistido pelos cidadãos Claude Joseph Duhamel, residente do município de Bourg, e de Françoise Cabruhel, esposa do cidadão Enjorrand, também residente de Bourg, vieram declarar a mim, Jeanvoine oficial público para receber as certidões de nascimento na comuna de Saint-Denis, que a cidadã Jeanne-Louise Duhamel esposa em casamento legítimo deu à luz ontem a uma criança do sexo masculino em sua propriedade neste lugarejo da cidade de Saint-Denis, ao qual eles deram os prenomes de Auguste Claude Joseph François. O qual me tendo sido apresentado eu aqui lavrei a presente certidão que os declarantes assinaram comigo.
Trata-se, portanto, de um irmão mais velho de Allan Kardec! Vê-se nessa certidão que seus pais, naquela época, ainda moravam em Belley, mas que Jeanne-Louise se encontrava em Saint-Denis-lès-Bourg, muito provavelmente em casa de sua mãe, Charlotte Bochard, viúva Duhamel.
Encontramos igualmente a certidão de nascimento seguinte, datada de 1º de agosto de 1799:
Este dia de hoje, quatorze termidor ano sete da República francesa, diante de nós Pierre Joseph Bouvier, oficial público da comuna de Bourg, abaixo assinado, apresentou Marie Charlotte Bochard, viúva Duhamel, domiciliada em St.-Denis-lès-Bourg a qual nos declarou que Jeanne-Louise Duhamel, sua filha, esposa do cidadão Jean-Baptiste Antoine Rivail, homem de lei morando nessa comuna, deu à luz no dia de ontem a uma hora depois do meio-dia uma menina que nos foi apresentada e chamada Marie-Françoise Charlotte Éloise [...]
Trata-se, portanto, de uma irmã mais velha de Allan Kardec, nascida, depois do irmão mais velho, em Bourg-en-Bresse, onde habitavam então seus pais. Infelizmente, essa irmã mais velha viveu apenas dois anos, como o atesta a certidão de óbito seguinte, datada de 14 de outubro de 1801:
Do vinte e três vindemiário ano dez. Certidão de óbito de Éloise Françoise Charlotte Rivail, de idade de dois anos, nascida em Bourg, Departamento do Ain, filha de Jean-Baptiste Antoine Rivail, proprietário, e de Jeanne-Louise Duhamel, casados, residentes em Bourg; morta no dia de ontem às três horas do meio-dia; sobre a declaração a mim feita por Charlotte Bochard, viúva Duhamel, avó da criança, domiciliada em St.-Denis-lès-Bourg [...].
O irmão mais velho de Allan Kardec não teve uma vida muito mais longa. Encontramos sua certidão de óbito, datada de 27 de dezembro de 1802:
Do seis nivose ano Onze. Certidão de óbito de Joseph Auguste Rivail, de seis anos de idade, nascido em St.-Denis, Departamento do Ain, filho de Jean-Baptiste Antoine Rivail proprietário e de Jeanne-Louise Duhamel, casados, morando em Bourg, falecido no dito lugar ontem às cinco horas da tarde; sobre a declaração a mim feita por Claude Joseph Guillot [...].
Os futuros pais de Allan Kardec sofreram, pois, outras dolorosas provas, pela morte de suas duas crianças pequenas com o intervalo de um ano.
Nascimento de Hippolyte Léon Denizard Rivail
Em outubro de 1804, seus pais habitando sempre em Bourg, nasceu Hippolyte Léon Denizard |Rivail, em Lyon.
A certidão de nascimento, datada de 1804, dá as seguintes informações sobre seus pais: Filho de Jean-Baptiste Antoine Rivail, homem de lei, residente em Bourg de l’ Ain (Bourg-en-Bresse) e atualmente em Paris, e de Jeanne-Louise Duhamel, sua esposa, que estava, presentemente em Lyon, na rua Sala, nº 74. Este endereço correspondia de fato a um estabelecimento de águas minerais artificiais, dirigido por Syriaque Frédéric Dittmar. À época, atribuía-se a essas águas numerosas virtudes curativas para várias doenças: Jeanne-Louise Duhamel ali se encontrava, por conseguinte, temporariamente em tratamento, certamente para ajudá-la durante a fase final de sua gravidez.
Aquele que iria se tornar Allan Kardec nasceu, portanto, depois do período conturbado que sucedeu à Revolução Francesa, tendo, porém, conhecido muitas outras revoluções em Paris no curso do século XIX, onde foi produzida a Codificação.
O desaparecimento de Jean-Baptiste Antoine Rivail
Jeanne-Louise, mãe do pequeno Hippolyte Léon Denizard Rivail, devia consequentemente estar mais feliz depois de seu nascimento. Ela morava com seu marido em Bourg-en-Bresse, perto de sua mãe, Charlotte Bochard, que residia em Saint-Denis-lès-Bourg com uma parte de sua família. Foi provavelmente nessas cidades que o pequeno Hippolyte Léon Denizard Rivail passou os primeiros anos de sua encarnação.
Contudo, as provações de Jeanne-Louise não haviam ainda chegado a seu termo. Pode-se ler no contrato de casamento de Hippolyte Léon Denizard Rivail com Amélie–Gabrielle Boudet, datado de 6 de fevereiro de 1832, a seguinte menção:
[...] Ao qual contrato estiveram presentes o Sr. Hippolyte Léon Denizard Rivail, chefe de instituição, filho único e maior do Sr. Jean-Baptiste Antoine Rivail antigo advogado, ausente sem notícias desde mais de vinte e cinco anos e presumidamente morto na Espanha, e da Sra. Jeanne-Louise Duhamel, sua esposa; de tal senhora, sua mãe, o Sr. Rivail declarou ter o consentimento.[...]
A mesma menção está presente na certidão de casamento de Hippolyte Léon Denizard Rivail com Amélie Boudet, datada de 9 de fevereiro de 1832:
[...]Sr. Denisard Hippolyte Léon Rivail, soldado no sexagésimo primeiro Regimento de Infantaria estacionado em Rouen, Departamento do Sena inferior, em licença de um ano em Paris, aí morando com sua mãe na rua Sèvres 35, nesta circunscrição, com 27 anos de idade, nascido em Lyon, Departamento do Rhône, o onze vindemário ano treze (três de outubro de mil oitocentos e quatro), filho maior do Sr. Jean-Baptiste Antoine Rivail, ausente sem notícias, e da Srta. Jeanne-Louise Duhamel, sua esposa, de cinquenta e oito anos de idade, presente e que consente com o casamento de seu filho. [...]
As certidões de nascimento dos esposos, uma ata de notoriedade lavrada pelo Sr. Juiz de Paz desta circunscrição, em três de janeiro último, registro constatando a ausência sem notícias do pai do esposo e uma permissão concedida em oito de setembro último pelo conselho de administração do sexagésimo primeiro Regimento de Infantaria que autoriza o esposo a contrair o presente matrimônio, foram entregues e rubricados, leitura disso foi feita, assim como do capítulo seis do título de casamento sobre os direitos e os deveres respectivos dos esposos. [...]
Pode-se deduzir que Jean-Baptiste Antoine Rivail desapareceu por volta de 1807, que seu filho único então tinha apenas dois ou três anos! Se uma desencarnação é uma dura prova, um desaparecimento sem notícias o é ainda bem mais.
Por que Jean-Baptiste Antoine Rivail estava na Espanha nessa época? É isso que falta confirmar... Recordemos, contudo, que ele tinha uma carreira militar e que estava próximo do exército dos Alpes, onde se encontrava Napoleão Bonaparte na guerra da Itália, no fim do século XVIII. Sendo a Espanha, aliada da França contra os ingleses, numerosos contingentes franceses ali estavam estacionados. Esses exércitos franceses e espanhóis sofreram, principalmente, a defesa de Trafalgar, em 1805. Napoleão Bonaparte nomeou o general Junot para o comando de um exército, então posicionado na Espanha, para invadir Portugal no fim de 1807.
Pouco depois, em 1808, começou a guerra de independência espanhola, que foi um tipo de guerrilha impondo numerosas perdas aos exércitos franceses.
Portanto, o pequeno Hippolyte Léon Denizard Rivail foi criado por sua mãe, Jeanne-Louise, que contava com o apoio de sua avó, Charlotte Bochard, e de seu irmão, François Duhamel, os quais habitavam em St.-Denis–lès-Bourg, onde Charlotte desencarnou a 3 de dezembro de 1825, época em que Hippolyte já morava em Paris.
Charlotte Bochard era viúva de Benoît Duhamel e filha de Claude Louis Bochard, que tinham funções elevadas e deviam ser relativamente ricos. Provavelmente, foi graças a ela que o jovem Hippolyte Léon Denizard, de inteligência precoce, pôde ir estudar no famoso Instituto Pestalozzi, em Yverdon, não tão longe de Bourg-en-Bresse.
A certidão de casamento menciona igualmente que Jeanne-Louise e François Duhamel, tio de Kardec, habitavam então com ele na rua Sèvres, em Paris, onde funcionava o instituto dirigido pelo professor Rivail.
Todos esses dados sobre o contexto dificil da França e da família de Rivail, que perduraram, em menor grau, durante sua trajetória como chefe de instituição escolar na primeira metade do século XIX, aumentam o mérito daquele que veio a ser o Codificador da Doutrina Espírita!
1.ARCHIVES DE FRANCE, ETAT CIVIL. Disponível em:
2.DÉPARTEMENT DE L’AIN. Disponível em:
3.LYON. Disponível em:
4.DOCUMENTOS DE RIVAIL. Disponível em: http://bit.Ly/1i0LEIk.
Extraído da revista Reformador ano 132, nº 2.221, abril 2014, ed. FEB.
Em 27.3.2015.
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