Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita :: setembro/2005
Raros documentos kardequianos, de alto valor histórico, são divulgados pelo Conselho Espírita Internacional no IV Congresso Espírita Mundial, em Paris, revelando novas e preciosas informações.
Por ocasião das merecidas comemorações do Bicentenário de Nascimento de Allan Kardec, que teve seu ponto mais alto no IV Congresso Espírita Mundial realizado em Paris, promovido pelo CEI: Conselho Espírita Internacional e realizado pela USFF: Union Spirite Française et Francophone, de 2 a 5 de outubro de 2004, foram apresentados alguns documentos inéditos e pessoais do insigne Codificador, que têm um alto valor histórico e significativo.
Esses raros documentos kardequianos fazem parte do extenso e rico acervo reunido pelo estudioso escritor espiritista, o saudoso Dr. Sylvino Canuto Abreu (Taubaté/SP, 19/01/1892 - São Paulo/SP, 02/05/1980) que ditou, durante o Congresso, uma comunicação em homenagem a Allan Kardec, através da psicografia do médium Raul Teixeira (que também recebeu uma mensagem psicográfica do Espírito Gabriel Delanne). Registramos ainda que no histórico Congresso Mundial, o médium Divaldo Franco recebeu em francês uma mensagem especular (escrita invertida) do Espírito Léon Denis, e pela via psicofônica de Dr. Bezerra de Menezes.
Essas Cartas, ainda inéditas, têm sido gentilmente cedidas pelo Instituto Canuto Abreu ao CEI, cujo Secretário Geral, Dr. Nestor João Masotti (também Presidente da Federação Espírita Brasileira), juntamente com o Primeiro Secretário do CEI, Sr. Roger Perez (atual Presidente da USFF), as divulgou generosamente no último Congresso Mundial, escaneando-as com o objetivo de preservar esses raros e valiosos documentos. Os textos manuscritos inéditos (que são sete), escritos por Kardec e pela sua querida esposa Amélie-Gabrielle de Lacombe Boudet (Thiais [Sena], França, 23/11/1795 - Paris, 21/01/1883), são uma expressiva fonte de investigação bibliográfica. A seguir transcrevemos o original francês escrito do próprio punho do mestre de Lyon de uma dessas sete Cartas Inéditas de Kardec, traduzindo abaixo para a língua portuguesa a correspondência que faz alusão à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde destaca-se uma nova informação revelada pelo citado Manuscrito do Codificador, que grifamos com letra itálica e negrita:
ORIGINAL FRANCÊS
«A Monsieur le Préfet de Police de la ville de Paris. Monsieur le Préfet: Les membres fondateurs du Cercle Parisienne des Études Spirites qui ont sollicité auprès de vous l'autorisation nécessaire pour se constituer en Société, ont l'honneur de vous prier de vouloir bien leur permettre des réunions préparatoires en attendant l'obtention de l'autorisation régulière. J'ai l'honneur d'être avec le plus profond respect, Monsieur le Préfet, votre très humble et très obéissant serviteur, H. L. D. Rivail dit Allan Kardec. Rue des Martyrs nº 8.». (6)
TRADUÇÃO AO PORTUGUÊS
«Ao Sr. Prefeito de Polícia da cidade de Paris. Sr. Prefeito: Os membros fundadores do Círculo Parisiense de Estudos Espíritas, que solicitaram junto a vós a autorização necessária para constituir-se em Sociedade, temos a honra de pedir-vos que consintais permitir-nos reuniões preparatórias, enquanto esperamos a autorização regular. Com o mais profundo respeito, Sr. Prefeito, tenho a honra de ser vosso muito humilde e muito obediente servidor, H. L. D. Rivail, dito Allan Kardec. Rua dos Mártires nº 8.» (Nossa tradução.)
COMENTÁRIOS - Note-se, então, o nome provisório - Cercle Parisienne des Études Spirites - que Kardec dá ao Círculo Espírita antes de constituir-se em Sociedade, Grupo que já se reunia todas as terças-feiras na Rua dos Mártires nº 8 - segundo andar, ao fundo do pátio -, residência particular de Rivail em Paris, e cujas reuniões ocorriam desde aproximadamente seis meses antes (1) da fundação da Société Parisienne des Études Spirites, que aconteceu em 1º de abril de 1858. A partir da transformação do Cercle em Société, essa viria a ter um papel de grande relevância histórica e doutrinária no Movimento Espírita Nacional e Internacional, como sendo a primeira Sociedade Espírita constituída do mundo. Por isso concluímos que todo esse importante Movimento começou com o pioneiro Círculo Parisiense de Estudos Espíritas, núcleo de vanguarda, também coordenado pelo mestre de Lyon.
Realizando um sintético histórico dos lugares onde a Société estabeleceu-se em Paris, Allan Kardec escreve textualmente (1) nas suas excelentes Œuvres Posthumes: «(...) Então, a Sociedade ficou regularmente constituída e reunia-se todas as terças-feiras no local que havia alugado no Palácio Real, galeria Valois. Ali esteve um ano, de 1º de abril de 1858 a 1º de abril de 1859. Não conseguindo permanecer nesse local por mais tempo, passou a se reunir todas as sextas-feiras em um dos salões do restaurante Douix, no Palais-Royal, galeria Montpensier, de 1º de abril de 1859 a 1º de abril de 1860, época em que se instalou num local próprio na Rua e passagem Santa Ana, nº 59. Formada no princípio por elementos pouco homogêneos e por pessoas de boa vontade que eram admitidas com demasiada facilidade, a Sociedade enfrentou numerosas vicissitudes que produziram não poucos obstáculos penosos à minha tarefa.» [Tradução nossa.] (Ver também maiores informações na Revista Espírita (RE) de maio de 1858, artigo X: Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - Fundada em Paris em 1º de abril de 1858, pág. 148; na RE jan. 1859-VIII: Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - Aviso, pág. 28, juntamente com a RE mai. 1860-I: Boletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - Sexta-feira 30 de março de 1860: sessão particular, pág. 130.) (2)
Outra observação digna de nota é a importante e corajosa identificação que o eminente Professor Hippolyte-Léon-Denizard Rivail faz ao assinar a Carta com o seu ilustre sobrenome e com seu digno pseudônimo respectivamente (Rivail-Kardec), oferecendo certamente o seu aval de pessoa séria e respeitada ante a autoridade municipal (Prefeito de Polícia de Paris) e nacional (Ministro do Interior), especificamente para a abertura da Sociedade, na qual deveriam dispor por lei de uma autorização legal e oficial para o encontro de um maior número de pessoas das que se reuniam em um Círculo.
CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL FRANCÊS DO SÉCULO XIX (3)
Pouco antes da data em que foi fundada a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, um revolucionário nacionalista e conspirador [Encyclopædia Britannica] italiano chamado Félix Orsini (Meldola [antigo Estado Papal, hoje Itália], 10/12/1819 - Paris, Francia, 13/03/1858), perpetrava um atentado em 14 de Janeiro de 1858 contra a vida de Napoleão III (Paris, 20/04/1808 - Chislehurst [Kent], Inglaterra, 09/01/1873) que, por pouco, não foi assassinado, e embora Orsini fosse defendido por Jules Favre (Lyon, Francia, 21/03/1809 - Versailes, 19/01/1880) - célebre advogado e político opositor a Napoleão III -, foi condenado à pena de morte, sendo executado na guilhotina. Este episódio provocou a sanção da Lei de Segurança Geral, que facultava ao Ministro do Interior a transladar ou exilar a qualquer cidadão francês que fosse reconhecido culpado de conspirar contra a segurança do Estado. Era uma lei rigorosa, que não se derrogou senão doze anos depois, em 1870. Os tempos então vividos eram de convulsão política; França estava sob a recente lei de segurança de 19 de fevereiro de 1858, sancionada por aquele atentado. O estatuto social da Société Parisienne des Études Spirites (SPEE) devia ser submetido às autoridades (4) sob este severo regime que, ante às novas idéias, colocariam sua atenção sobre o objeto e os nomes dos seus componentes.
A respeito disto, deixemos continuar falando o notável Codificador (1): «(...) Então, foi necessário obter uma autorização legal, para evitar problemas com as autoridades. O Sr. Dufaux, que conhecia pessoalmente ao Prefeito de Polícia, encarregou-se da petição. A autorização dependia também do Ministro do Interior, que era o general X, que - sem que o soubéssemos - simpatizava com nossas idéias, sem conhecê-las completamente; graças à sua influência, a autorização pôde ser conseguida em quinze dias, que teria levado três meses se seguisse o trâmite usual. (...)» [Tradução nossa do original francês.]
É importante destacar que o Sr. Dufaux deu garantias ao Prefeito que a SPEE tinha caráter apolítico. Por outro lado, o Dicionário Enciclopédico Quillet refere-se a Felice Orsini como um patriota italiano, deputado na Constituinte de Roma de 1849 que, ao cair a República, se refugiou em Paris. Em 1858 atentou contra Napoleão III por haver este restabelecido a autoridade do Papa nos Estados Pontifícios. Orsini foi guilhotinado em 13 de março de 1858, isto é, quase vinte dias antes da fundação da Société Parisienne des Études Spirites.
Eis a importância e o significado histórico desse inédito documento kardequiano. Nossas mais sinceras congratulações ao Instituto Canuto Abreu e ao Conselho Espírita Internacional pela difusão aberta (5) destas valiosas Cartas (6), que permitem compreender mais profundamente a rica História do Espiritismo - e do Movimento Espiritista - para esclarecimento integral das gerações atuais e futuras.
(1) KARDEC, Allan. Fondation de la Société Spirite de Paris, 1er avril 1858. In: ______. Œuvres Posthumes. Nouvelle édition conforme à la ed. de 1927. 311 pp. Paris: USFF - Union Spirite Française et Francophone. 2ª parte, p. 231 (§§ 2º e 3º) e p. 232 (parágrafos 1º e 2º).
(2) KARDEC, Allan. Société Parisienne des Études Spirites, fondée à Paris le 1er avril 1858. In: ______. Revue Spirite: Journal d'Études Psychologiques. Nouvelle édition. 356 pp. Paris: USFF. Première Année - Mai 1858. p. 148. Disponível em internet: http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf (portal da USFF).
3) Contexto extraído da nota do tradutor nº 150 da Revista Espírita: Periódico de Estudios Psicológicos (Año 1858), de Allan Kardec, traduzida ao Espanhol por EEB diretamente do original francês, Ediciones CEI: Consejo Espírita Internacional, 2005, pág. XLV. Disponível em: www.feparana.com.br (portal da FEP).
(4) BARRERA, Florentino. La Sociedad de París. In: ______. La Sociedad de París: Société Parisienne des Études Spirites: 1858-1896. 2ª ed. revista e aumentada, 100 pp., ilus. Buenos Aires: VIDA INFINITA, 2002. p. 14.
(5) HMP Editora. Cartas Inéditas. Universo Espírita. São Paulo/SP, nov. 2004, nº 15, p. 43, art. de Macedo Sarra.
6) LA REVISTA ESPÍRITA Nº 6 en español (Órgano oficial del CEI), com reprodução dos originais franceses do Manuscrito Inédito de Kardec, cedido gentilmente pelo Conselho Espírita Internacional, artigo traduzido do Castelhano ao Português (com revisão de RB) pelo próprio autor [págs. 18 a 20]. Disponível em: www.spiritist.org (portal do CEI).
© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014