Grandezas e misérias humanas - Vianna de Carvalho
Pode-se afirmar que a Mãe Rússia iniciou sua História com o surgimento do principado de Kiev.

A iniciativa de ser criada uma capital para os inumeráveis grupos étnicos que dominavam largas regiões da Europa e da Ásia tinha como propósito principal a necessidade de erguer-se um império capaz de resistir às invasões dos inimigos fronteiriços.

Elegendo-se a região pantanosa de São Petersburgo para sediar a nova capital, que mais tarde seria transferida novamente para Moscou, os seus czares ou césares destacaram-se pela ânsia de poder, de luxo e de selvageria.

Grandes construtores e hábeis comandantes de tropas que se espalhavam de um lado ao outro do país fizeram um grandioso legado à Humanidade, especialmente no que se refere às conquistas, às artes, aos tesouros de metais preciosos e pedras raras, algumas das quais únicas existentes no mundo.

Os seus escritores, culminando com Pushkin, a quem se deve a consolidação do seu atual idioma, inscreveram nomes admiráveis nos anais da História, na poesia, na literatura, na dramaturgia, como os de Dostoievski, Tolstoi, Gogol, Evtuchenko, que imortalizaram a sua vasta e gloriosa cultura.

De Ivan, o Terrível, a Catarina, a Grande, de Pedro, o Grande, a Alexandre II, assassinado em atentado terrorista, o império russo destacou-se no passado como um dos mais gloriosos e combativos, sempre contando com o clima severo que, mais de uma vez, impediu que os conquistadores pudessem governá-lo nos terríveis dias das temperaturas negativas, incluindo o quase invencível corso Napoleão Bonaparte, o que se repetiu durante a Segunda Guerra Mundial em relação ao expansionismo nazista, graças à indômita coragem do seu povo...

Trazido o alfabeto grego pelos sacerdotes Cirilo e Teodósio, no século X, antes da chegada do Cristianismo ortodoxo, para servir de modelo à comunicação entre os habitantes que falavam múltiplos dialetos e idiomas, introduziram, também, a religião que iria predominar apaixonadamente, como sendo a salvadora de todos os indivíduos, especialmente aqueles que fossem generosos para com a doutrina, nisso incluindo os governantes.

O homicídio insano, decorrente da ânsia do poder e para não o perder, era cometido com naturalidade sob o olhar complacente do soberano, ou mesmo graças a ele, qual ocorreu com Catarina que, ante qualquer suspeita de conspiração, real ou imaginária, mandava exterminar o indivíduo ou o grupo sob observação.

A grande czarina, objetivando libertar-se da culpa, justificava a sua ação nefanda, explicando que matar o inimigo era uma atitude de preservação do trono e da própria vida, mas, se por acaso, ele fosse inocente, deveria isso ser considerado uma honra, senão uma bênção, porquanto, nessa condição, mais facilmente entraria no Reino dos Céus, por ser vítima de uma ação infeliz.

Venenos de efeitos terríveis, punhais muito bem manipulados, criminosos mercenários sempre estiveram ao lado dos imperadores, zelando, odientos, pelas suas vidas, mediante o extermínio indiferente de outras tantas.

As suas construções palacianas, planejadas pelos mais hábeis arquitetos europeus, que eram buscados nos seus países a peso de ouro, atingiram o máximo das suas habilidades para adornar essas monumentais edificações, tornando-as ímpares, nas áreas imensas ajardinadas, irrigadas por fontes e monumentos incontáveis, com tílias, bétulas e carvalhos, que se transformariam em bosques portadores de majestática beleza.

Mesmo o último czar russo, Nicolau II, assassinado vilmente com sua família em Ekaterimburgo, por ordem de Jacob Sverdlov, representando os bolcheviques, que tomaram o poder na Revolução de 1917, havia governado com mão de ferro e impiedade o povo que estorcegava na miséria, na fome, no abandono, enquanto o excesso sempre esteve nos salões imensos dos banquetes ostensivos.

E sucediam-se as guerras contra os países fronteiriços, sempre considerados ameaças em potencial, ou enfrentamento com as nações bárbaras que atacavam periodicamente os imensos domínios, a fim de se apoderarem dos tesouros inigualáveis.

O povo – sempre os mujiques (camponeses) e os desempregados – era tido como detestável, nutrindo-se de sopa de repolho, quando conseguia algo, e pão quase apodrecido, morrendo de inanição ou de doenças perversas que dizimavam as populações.

Lamentavelmente, todos esses desaires eram apoiados pelos patriarcas ortodoxos que passaram a governar a fé religiosa cristã, adaptada às suas paixões e ao luxo absurdo, desafiando a nobreza do Evangelho de Jesus todo simplicidade e amor.

A opulência das igrejas em geral, as suas cúpulas recobertas de lâminas de ouro, os tesouros acumulados e os ícones envoltos em metais preciosos para serem adorados, conseguiram transformar-se em verdadeiros Reinos dos Céus.

Quando correu a notícia do fim do mundo, previsto para o ano de 1492, os sacerdotes habilmente se utilizaram da superstição para propor que fossem construídas mais igrejas, ainda mais opulentas, quais as que se encontram dentro das muralhas do Kremlin (fortaleza), glorificando Deus e os santos.

Em revanche absurda, por sua vez, a revolução bolchevique transformou grande número delas em escolas de ateísmo, dilapidando os seus tesouros, furtando e roubando os seus bens, arrasando com as suas propostas perversas a fé ingênua das multidões que passaram à nova dominação política, agora nas mãos cruéis do Estado, sempre dirigido por hábeis e perversos idealistas que formaram uma nova classe de exploradores, especialmente no Politburo.

Muitos desses templos faustosos foram dilapidados, transformados em depósitos, em cavalariças em total desprezo pela arte e grandeza arquitetônica de que se constituíam.

Com a decadência do comunismo soviético e a sua falência, quando se puderam descobrir os crimes praticados, o sofrimento do povo esfaimado, ao tempo em que se fabricavam armas de guerra, bombas atômicas de destruição total, novamente a religião, antes tida como o ópio das massas, passou a funcionar, reerguendo-se palácios e templos que o comunismo desejou aniquilar sem o conseguir.

Não se apagam símbolos arquetípicos da Humanidade por meio da hediondez e da perseguição. O mito e a crença constituem herança psicológica responsável pela formação psicológica de todos os povos.

O ser humano é um animal religioso e ninguém pode destruir-lhe a religiosidade, que é um traço de vinculação com Deus, mesmo quando os religiosos corrompem as doutrinas com as suas misérias e degradações infelizes no exercício a que se dedicam, desse modo comprazendo-se em estigmatizar e humilhar os crentes simplórios e confiantes.

Como ninguém escapa à voragem do passar do tempo e à sua inexorável imposição, esmagando a soberba, vencendo a prepotência, dobrando a cerviz mais atrevida, os poderosos de um dia sucumbem nas enfermidades, nos desgastes decorrentes dos excessos a que se permitem, sendo vítimas de traições ignóbeis, de armadilhas bem urdidas, da velhice, das doenças que os consomem.

A grande mãe Rússia,  como todos os antigos Impérios que o tempo consumiu, transformando-os em escombros por onde cantam os ventos que continuam soterrando-os, ergue-se na atualidade como poderosa potência militar, estratégica, temida e respeitada, fazendo parte do concerto das nações da Terra, enquanto aqueles mesmos conquistadores e poderosos de ontem, hoje se encontram nos palácios que lhes pertenceram em determinado momento, mas agora como zeladores, fiscais, funcionários humildes, contemplando o poder que lhes escapou das mãos.

Isto, quando não se encontram pelas ruas das cidades grandiosas na condição de mendigos de pão e de agasalho, de um teto e de medicamento, com o olhar esgazeado, contemplando a distância as cúpulas recobertas de ouro, a que não têm mais acesso nem recurso para pagar as entradas e caminhar pelos faustosos museus com lágrimas nos olhos e os corações dilacerados...

Muitos deles, os conquistadores, os dominadores, os criminosos coroados, já retornaram ao proscênio terrestre, mais de uma vez, no campo áspero da agricultura, nos cortiços imundos e sem ventilação, nas expiações mais dolorosas, a fim de aprenderem a respeitar os soberanos códigos da Vida que vilipendiaram e de que se utilizaram exclusivamente para o prazer chão e caprichoso da inferioridade moral na qual ainda permanecem.

Enquanto isso sucede, porém, Jesus prossegue informando que as raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (Mateus, 8:20), e os enganadores encontram-se nos seus alçapões mesmo que dourados e vestidos de brocado e seda, onde, no entanto, permanecem aprisionados, sem forças para romper as grades e libertar-se.

Glória ao Mártir da cruz, cujo símbolo esses infelizes potentados ostentam, nas religiões e nos governos, distantes do significado de amor que representa, demonstrando poder e grandeza que passam com volúpia, desvestindo-os da argamassa celular e confundindo-os no pó da terra com os vassalos, os desprezados, aqueles aos quais infelicitaram.

As inabordáveis leis da Vida inscrevê-los-ão nos seus arquivos e processos de justiça, convidando-os à reparação e ao sofrimento, nos quais identificarão os crimes calamitosos a que se permitiram, recomeçando a trajetória nas vestes gastas da miséria que desprezaram.

Vianna de Carvalho
Psicografia de Divaldo Pereira Franco, na tarde de 9.7.2010, após visitar o Kremlin, em Moscou, Rússia. Transcrição parcial.
Em 20.9.2023.

© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014